Num terreno que fazia parte da antiga colônia psiquiátrica na Taquara, mato e entulho foram aos poucos dando lugar a lindos pés de alface e outras hortaliças. Ocupada pelo projeto Arte, Horta & Cia, ligado ao Programa de Geração de Trabalho e Renda do Instituto Juliano Moreira, a área ganhou ressignificação capacitando e dando ocupação a pacientes assistidos pela rede de saúde mental e à comunidade. Com objetivo de garantir sustentabilidade e bem-estar social, o projeto acaba de receber o Certificado de Conformidade Orgânica da Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO).
Integrado ao Museu Bispo do Rosário, o projeto Arte, Horta & Cia é a primeira iniciativa dentro da Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) a receber esse certificado. A avaliação leva em conta a produção orgânica e qualidade do serviço prestado, conforme a legislação vigente dos princípios agroecológicos.
O Arte, Horta & Cia oferece um curso de agricultura urbana e agroecologia semestralmente para capacitação. Com duração média de quatro meses e com 64 aulas ao total, sendo práticas e teóricas semanais, em torno de 3 mil participantes estimados já foram beneficiados, entre usuários dos centros de atenção psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde, moradores do entorno e integrantes que apoiam o funcionamento da iniciativa.
A horta agroecológica começou a ser preparada em 2021. Na época, a terra foi arada, gradeada e estimulada com adubo para o estudo apropriado do que poderia ser cultivado. Já em 2022, a produção começou a ganhar fôlego e desde então segue rendendo mantimentos. Na área plantada de dois mil metros quadrados com 90 canteiros, alface, couve, almeirão, coentro e cebolinha já foram colhidos. Coqueiros, limoeiros e bananeiras também podem ser vistos ao longo do terreno que tem ao todo 20 mil metros quadrados. A estimativa é de uma produção de aproximadamente 300kg por ano de culturas diversas. Para a coordenadora do projeto, Marcelle Souza, o objetivo central é construir uma visão crítica e autônoma dos membros da horta.
“Entendemos a participação na horta como fomento à saúde integral do indivíduo. A gente estimula a emancipação desse sujeito nesse espaço para que ele deslumbre outras possibilidades fora desse território. A nossa premissa é incentivar uma visão de mundo que possibilite escolhas”, explica Marcelle.
O projeto pôde proporcionar a recuperação da independência e do desenvolvimento do marido da Valéria Serqueira. Moradora da região há 60 anos, ela começou a perceber uma movimentação na localidade em meados de 2022, o que foi suficiente para despertar um interesse. Decidida a levar seu esposo ao projeto na época, logo percebeu o quanto ele foi acolhido e como evoluiu. Vanderley de Oliveira sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) em 2018 e desde então teve que lidar com sequelas. A interação e a prática com o cultivo foram suficientes para o progresso dele. Valéria acompanhou de perto cada avanço e resolveu entrar no projeto também.
“É uma alegria e tenho muito o que agradecer. Meu marido é outra pessoa! Vendo como ele está hoje, você não acreditaria em como estava antes de vir participar. O pessoal do projeto não só faz plantações, vasos ou ornamentações, como também faz a gente se lembrar que está vivo. Percebemos que nós somos alguém e que podemos vencer”, conta Valéria.
Cercada por lembranças de seus pais e de sua infância sempre que está na horta, Eliana Dias mora na região há 53 anos e chegou ao projeto convidada por uma vizinha. Ela já mantinha o hábito de cuidar de um jardim caseiro e se viu encantada com as plantações. Escolheu participar e, desde então, a cada aula é um novo aprendizado e ela ficou impressionada com a plantação de almeirão.
“Aprendi a exercitar a paciência, esse é o grande ganho, nos voltarmos para nós mesmos e reconhecermos o nosso papel nesse mundo. Respeitar a terra e suas nuances e além disso respeitar o próximo”, diz Eliana.
Um diferencial na horta é a utilização de tecnologias sociais como a compostagem, sistema de biodigestores e um jardim filtrante para facilitar melhores condições de cultivo e o aumento da produtividade. Parte dos alimentos plantados é utilizada posteriormente no restaurante Bistrô do Bispo, no Museu Bispo do Rosário, no qual um cardápio é pensado e preparado para servir comidas brasileiras e naturais. A colheita também é compartilhada entre os integrantes do projeto e a comunidade da região, procedimento decidido todo mês numa assembleia realizada entre os integrantes do projeto para direcionar as ações no espaço.
“Esse certificado foi conquistado no mês de conscientização do meio ambiente, é um reconhecimento que mostra que estamos no caminho certo”, diz a diretora do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, Luciana Cerqueira.
“Temos sustentado o desejo da horta de ser reconhecida como uma referência em agroecologia e saúde mental, geração de trabalho e renda dentro da perspectiva da economia solidária. Todo esse processo é na via da autogestão, participação social, bem como instigador da saúde e do bem-estar integral. A desinstitucionalização desse Instituto conduz a comunidade local a ocupar um lugar social e subjetivo transformado pelo afeto onde outrora já foi dor e exclusão”, explica a diretora Luciana Cerqueira, lembrando que por muito tempo o terreno foi uma instalação de internação masculina manicomial e após a reforma psiquiátrica passou a ser usado como depósito de construção civil.
O curso de formação em agricultura urbana e agroecologia está em sua terceira turma de formação. A cada semestre são disponibilizadas 15 vagas destinadas para usuários da rede de atenção psicossocial e moradores locais. Para a inscrição, é necessário procurar a coordenação do Programa de Geração de Trabalho e Renda. O projeto pretende expandir a participação da comunidade, bem como ampliar o plantio e a inserção de mais tecnologias sociais no espaço, como captação da água da chuva, participação em feiras e aproximação de parceiros para troca de conhecimentos.