
O cabelo recém-pintado de castanho avermelhado e o sorriso largo de Leonor Miranda, 54, em nada remetem à figura que os agentes do programa Consultório na Rua encontraram na Praça da Cruz Vermelha, no Centro, em 2023. A exceção é a tatuagem no braço direito com o nome do filho, morto aos 17 anos, que ela exibe como se fosse uma cicatriz. O rapaz, seu primogênito, foi assassinado após se envolver com o crime organizado. Quase duas décadas depois, ela reconstrói os dias seguintes ao acontecimento: um mês inteiro reclusa, só usando cocaína, sem se alimentar nem limpar a casa, sem receber visitas. Depois daquele tempo sombrio, prometeu a si mesma que nunca mais se meteria com droga, e assim o fez. Livrou-se da cocaína, se recompôs e, após arranjar um emprego de faxineira num restaurante em Copacabana, na Zona Sul, conseguiu sustentar a casa em que morava com o filho caçula em Vila Aliança, na Zona Oeste. (Era mãe solteira. Tinha largado o ex-marido, pai de seus filhos, porque “apanhava até de corrente”, como ela conta.)
Há pouco mais de dois anos, porém, o caçula também começou a usar cocaína. Então com apenas 23 anos, ele se endividou, pegou o dinheiro da mãe para custear o vício, chegou a vender os móveis da casa na calada da noite, mas a dívida só crescia. Leonor precisou vender a casa para quitar as pendências dele. Conseguiu assim proteger o segundo filho da morte, mas não pôde evitar perdê-lo para a rua. Àquela altura, ele já tinha sumido. Ela partiu em busca dele e, não tendo para onde voltar, na rua permaneceu. Passou meses indo de um canto a outro da cidade, mas nada de achar o rapaz. Para sobreviver, mendigava e revirava lixeiras à procura de restos de alimento e de qualquer coisa que pudesse usar ou vender. Não se rendeu à droga, mas entrou em depressão.
Como outras 4.890 pessoas, Leonor foi acolhida pelo programa Seguir em Frente. O número corresponde a três em cada cinco pessoas em situação de rua no município, conforme dados do Censo de População em Situação de Rua de 2022. “Quando você não tem ninguém, você se perde. As pessoas te olham como se você fosse um bicho. De vez em quando eu discuto quando vejo alguém humilhando pessoas de rua, eu digo: ‘Já passei por isso’”, diz.
’A dor tá passando’
Na RUA Sonho Meu, Leonor passou por tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Dona Ivone Lara, onde ainda realiza sessões de psicoterapia semanalmente. Também recebeu prótese dentária e fez tratamento para a diabetes — tinha chegado à unidade com a glicose na marca de 596 mg/dL, como a equipe de saúde da família descobriu ao examiná-la. Está sóbria desde quando entrou no programa.
Chegou a reencontrar o filho, mas não conseguiu convencê-lo a seguir seu exemplo. Então, escolheu cuidar de si mesma. Como bolsista da turma da limpeza na RUA Sonho Meu, se destacou pelo empenho e pela dedicação. Pouco depois, veio o convite para trabalhar como auxiliar de limpeza na Clínica da Família Mestre Molequinho do Império, em Engenheiro Leal.
“Precisava de uma psicóloga e consegui no CAPS. Ela abriu minha mente. Esse ano vou entrar no EJA (Educação de Jovens e Adultos). Tudo que eu não fiz, tô querendo fazer agora”, diz a auxiliar de limpeza. “Comprei tudo novinho pra minha casa, com o meu dinheiro. A dor tá passando. Hoje eu rio, me divirto. A vida mudou e vai mudar mais ainda.”
Assim como Leonor, 1.831 usuários acolhidos pelo Seguir em Frente já passaram pelo Programa de Reinserção Produtiva. Entre eles, 215 bolsistas que estão atualmente trabalhando na rede de Atenção Primária da Secretaria Municipal de Saúde (centros municipais de saúde e clínicas da família). Outros 103 trabalham nas próprias unidades de acolhimento (UAA), como a RUA Sonho Meu. Em todo o município, 76 unidades de Atenção Primária já contam com a mão de obra de usuários e ex-usuários do programa.